BNCC, GEOGRAFIA E DOCENTES DE GEOGRAFIA
01/02/2016 19:21
BNCC, GEOGRAFIA E DOCENTES DE GEOGRAFIA1
Roberto Marques2 robertogeofe@ufrj.br
Boa noite. Antes de iniciar a conversa e apresentar alguns pontos de vista e argumentos, vou contar duas breves histórias. A primeira aconteceu no final dos anos 1980, na província de Jacarepaguá, sertão do Rio de Janeiro. Nasci e cresci ali. Sou filho de uma classe média baixa que experimentou uma pequena ascensão social através dos estudos. Minha mãe estudou em escolas públicas e é possível que fale, ainda hoje, da “qualidade perdida”, ou que “no seu tempo” a escola pública era boa. Então, para seus filhos dedicou todo o esforço possível no sentido de matriculá-los em escolas privadas, ainda que não fossem aquelas identificadas como “mais fortes”, “muito boas”, como as escolas dos “santos” (Inácio, Agostinho, etc.).
Nas escolas onde estudei, havia vários e vários adolescentes e jovens com trajetórias familiares muitíssimo semelhantes a minha. Pessoas com as quais convivi e com algumas mantenho amizade ou contato até hoje. Naquela época (e é isso que eu quero contar), era um sonho comum e símbolo de status fazer uns meses de intercâmbio no exterior, em especial nos EUA, morando em casas de famílias estrangeiras e estudando em escolas por lá. Estudei com gente que saiu daqui e com alguns estadunidenses e um alemão que vieram fazer intercâmbio no Brasil, morando em casas de brasileiros. Certa vez, um colega relatou uma situação que viveu em uma escola nos EUA. Não lembro exatamente o estado, mas recordo que a aula e geografia era uma coisa que achei muito estranha. No melhor estilo da Escolinha do Professor Raimundo, a aula acontecia em uma espécie de programa de perguntas que os alunos não conseguiam responder corretamente, na grande maioria das vezes. Como esse meu colega tinha conhecimento sobre os assuntos, respondia e respondia, até que o professor reclamou e disse que ele estava estragando a aula (ou algo parecido). Essa foi uma primeira história.
A segunda que trago é de um quadro do finado TV Pirata, também da mesma época. Nesse quadro, entravam uns assaltantes em uma casa onde um casal estava assistindo televisão. Eles pegavam uma pessoa, apontavam uma arma para ela e um deles perguntava: “Quais são os afluentes da margem direita do rio Amazonas?". A vítima respondia rápido: “Javari, Jataí, Juruá, Madeira, Purus e Coari”. “E da esquerda? Napo, Iça, Negro, Jari”. “E...? Paru!”. Então, o assaltante largava o sujeito e a dupla deixava a casa. Depois refazendo do susto, mulher comentava: “Não falei que isso ia ser importante pra você um dia?”.
Pois bem, essas duas histórias vieram à minha mente quando parei para organizar essa fala sobre a BNCC e a geografia escolar. Não sei ao certo o motivo dessa dupla lembrança, mas são histórias que achei importante compartilhar, para pensarmos um pouco sobre o que estamos vivendo, nesse debate nacional-curricular compulsório. Nos dois casos – seja no quiz show ou no deboche – temos uma geografia que é um apanhado de conteúdos objetificados e distantes. Uma disciplina escolar que atende tão somente aos interesses da escola, entendida e reconhecida como um espaço de economia própria. Ou seja, uma disciplina que ensinamos e aprendemos para, primeiro, deixar satisfeita a própria escola. A satisfação escolar tem nome e sobrenome: boas notas. Hoje, esse nome é também utilizado pelo grande sistema e ganhou um apelido: IDEB – que é a sigla para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.
São as boas notas que movem a educação. A busca pelos bons indicadores é o objetivo a ser alcançado. Qualidade, hoje, passou a ser isso: nota no PISA (programa Internacional de Avaliação de Estudantes), no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), IDEB, Ide-RIO, etc. Números que dizem se a aluna melhorou, ou se o trabalho do professor está evoluindo, se a educação no município está melhor, se tal estado tem uma educação inferior a do seu vizinho e... se a educação país vai mal ou vai bem. A histeria pelas estatísticas comprobatórias do rendimento e pelas posições em tabelas classificatórias deslocou alguns temas importantes para o canto do esquecimento e condicionou outros. Explico. A discussão sobre valorização salarial do 3 magistério, por exemplo, passou a ser tema de debate sobre incidência ou não dos salários sobre o rendimento dos estudantes. É claro, com “pesquisas mostrando” ou “especialistas dizendo” que não há uma relação direta entre salário do professor e desempenho do aluno.
O mesmo monopólio de pauta vem acontecendo com relação ao currículo e isso desemboca na urgência alardeada de definição de uma Base Nacional Curricular Comum, tida como fundamental para que o país possa avançar no campo da educação.
Em 2012, a professora Magda Soares deu a seguinte declaração à Revista Pedagógica:
Temos avaliações externas nacionais, como o Saeb, Prova Brasil, Provinha Brasil etc. Ora, instrumentos de avaliação só podem ser feitos com base num currículo. Mas não existe um currículo no Brasil. Isso é absolutamente contraditório! (Magda Soares – Revista Pedagógica p.12, set/out/2012)
Em vídeo disponibilizado na página
Em linhas gerais, Magda Soares já foi clara: alguém que cumpre metas. Metas externas. Se olharmos rapidamente para a organização do documento da Base, podemos notar que ele traz expressões como “objetivos de aprendizagem” e “direito de aprendizagem”. Conceitos nada inocentes e que devem ser vistos de forma vinculada, pois estão na Meta 7 do PNE como condição para a qualidade da educação. O professor é quem promove o acesso aos direitos garantidos para os estudantes. Direitos sobre conhecimentos que serão verificados frequentemente, por meio de exames. Cabe, portanto, ao docente, promover os bons desempenhos dos estudantes, oferecendo-lhes aquilo que lhes é de direito: o conteúdo da Base, que será aferido posteriormente.
O emaranhado conceitual e discursivo que está colocado exige de nós um posicionamento em relação ao projeto de sociedade, de educação e de docência que temos. É fundamental que seja feito esse debate, para podermos pensar, finalmente, qual é a geografia que queremos nas nossas escolas e qual geografia pretendemos construir nas nossas salas de aula, com nossas crianças, jovens e adultos. Enquanto incorporarmos como nossa uma demanda por professores como profissionais responsáveis por fazer com que os estudantes tenham bons desempenhos nas avaliações externas, estaremos de mãos atadas; estaremos abrido mão de um mínimo de criticidade. Estaremos permitindo que a criticidade seja substituída por uma espécie de criatividade metodológica em sala de aula.
3 O PISA, por exemplo, afere o desempenho dos estudantes em Matemática, a língua nacional e Ciências Naturais.
E aí, pouco importa se a geografia da BNCC é uma mistura de programa do Greenpeace com manual de cidadania do consumidor global da UNESCO, ou se continuamos sobre o monopólio epistemológico liberal da teoria do capital humano e suas competências e habilidades, ou se conseguimos introduzir uma geografia crítica, de fato, nas salas de aula. Infelizmente, tudo isso pode se tornar um debate inútil, uma vez que qualquer conteúdo que se aproxima no front tende a ser apropriado por propostas e políticas que transformam o conhecimento em mero objeto a ser assimilado. Enfim, o debate está aí.