Notas para discutir a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular

01/02/2016 19:41

Notas para discutir a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular

 Ana Angelita da Rochai

Este ensaio anseia explorar um documento inacabado. O documento preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BCN), cuja versão definitiva é prevista para o primeiro semestre de 2016, comunica um projeto de seleção do conhecimento escolar para toda educação básica. Um documento ambicioso que enumera os saberes a serem aprendidos, ensinados e avaliados. Para tanto, tratamos de um momento agudo da reforma curricular que impacta, seguramente, o trabalho e a satisfação do professor. O que nos intriga é que numa conjuntura de insegurança política, em que o imperativo é a dúvida, um documento, como a BCN, comunica certezas de impacto na geração futura

 

Diante de uma marco legal com intencionalidades de intervenção no trabalho docente, é urgente “a desterritorialização” do texto curricular, o fazer fugir, para alimentar uma agenda propositiva da Geografia na escola. Isso começa por enumerar conteúdos inegociáveis, em torno daqueles que a comunidade geográfica (professores e cientistas) consideram como princípios que justificam o ensino da disciplina, sob qualquer ordem do discurso curricular.

 

Trata-se de um documento denso, mas de fácil leitura. Isso não retira a complexidade das afirmativas em função da vontade pública de apontar trajetórias escolares. Com mais de 300 páginas, a versão preliminar disponibilizada pelo Ministério da Educação apresenta os objetivos para a educação básica, descreve as finalidades para cada área e ainda enumera as suas funções éticas e morais da escola. Ainda que reiteradamente afirme sua condição de consultivo, como não interventor no cotidiano escolar, o que chama atenção, sem dúvida, não é somente o caráter prescritivo do documento, mas a dimensão liberal adotada, por exemplo, na definição da “religião” como componente curricular na área das ciências humanas. Talvez, aquela seria uma resposta às reivindicações, por ora hegemônicas, de projetos mais conservadores?

 

Outras marcas de caráter liberal do documento estão em torno das significações de “percursos de aprendizagem” ou de “direitos de aprendizagens”. Os formuladores do texto propuseram doze objetivos educacionais e os nomearam de “direitos à educação”, com flagrante destaque para o discurso da formação para o trabalho como projeto de vida. Interessante notar que tais marcadores do projeto liberal se hibridizam com outras reivindicações de distintos grupos políticos que disputam a agenda educacional.

 

Para fins de evidenciar tal argumentação, caberia, brevemente, explorar a expressão “direto à educação” associada diretamente à centralidade do discurso do trabalho como projeto de vida: “experimentar e desenvolver habilidades de trabalho, se informar sobre condições de acesso à formação profissional e acadêmico, sobre oportunidades de engajamento na produção e oferta de bens e serviços, para programar prosseguimento de estudos ou ingresso no mundo do trabalho” (BRASIL, 2015: P. 8, grifos nossos)

 

O culto fetichizado ao mundo do trabalho - que na sociedade contemporânea se traduz no mundo da ocupação, da flexibilidade e da instabilidade, como nos ensina Ricardo Antunes (2002) em seu contundente “Adeus ao mundo do trabalho?”- é a espinha dorsal do documento cuja proposição final revisará os fundamentos da educação básica. Com efeito, qualquer marcador curricular carrega o compromisso da formação para o trabalho, mas a especificidade deste texto está na individuação deste princípio. Não seria desnecessário dizer que as “bases” reatualizam o discurso tecnicista, fundador dos programas curriculares da década de 40, privilegiando, por exemplo, as orientações de Ralph Tyler (1981). De fato, a dimensão individual do texto se amalgama aos princípios da “pedagogia empreendedora”ii, agora nas cristas das ondas das entidades públicas e privadas que disputam projetos educacionais.

 

Interessante notar que o documento, na sua parte introdutória, se fundamenta na ambiguidade entre organizações curriculares mais integradoras com outras mais disciplinares. Como evidência desta ambiguidade temos o silenciamento da palavra “disciplina” em substituição ao “componente curricular”, contidos em áreas do conhecimento, reconhecidamente como conjunto integrador de outras disciplinas. Essa proposta discursiva, para nomear os saberes eleitos, tem uma implicação imediata na distribuição dos validados, dos regimes de verdade que, de fato, serão objeto de ensino. Observem ainda que a distribuição é dependente do chamado “direito de aprendizagem”, dimensão de base intensamente comportamentalista que estrutura a proposição curricular.

 

Com essa impressão inicial do documento, de sua marcação fundamentada na inspiração comportamentalista e na sinonímia entre projeto de vida e formação para trabalho, opero aqui com a suspeita de que não lidamos com um documento que estimule a dimensão geográfica para tratar de temáticas políticas que autorizam projetos emancipatórios e reivindicações populares.

 

Dessa forma, considerando a epistemologia escolar como princípio politico, questiono-me sobre a centralidade do discurso da “sustentabilidade” e do “consumo” como organizadores da seleção curricular privilegiada no documento, evidente, por exemplo, no seguinte fragmento: “Debater fatos, situações e processos que evidenciam a relação entre o consumo e utilização dos recursos naturais, em diferentes escalas, desenvolvendo uma ética da sustentabilidade de global e planetária.” (p.282, grifos nossos)

 

Tal objetivo educacional da “sustentabilidade planetária” proposto pela Base, no meu ver, não sublinha a hegemônica relação (colonização) com a natureza. O que, talvez, poderia escamotear essa estrutura desigual, como condição de pensamento que justifica o ensino da Geografia, por exemplo. Em outras palavrsas, reconhecendo o caráter limitado do objetivo de aprendizagem ao centralizar o debate geográfico no discurso do “consumo responsável”, volto-me para a linguagem da possibilidade, com o fim de vislumbrar linhas de fuga, no entender deleuziano, “desterritorializar” o pensamento do documento, recriando outros agenciamentos, o reterritorializando.

 

Essa forma de interpretar os documentos, com o foco na exploração das linhas de fuga, pode ser percebida como uma agenda anterior, ou seja, a meta primeira para a organização docente propor uma revisão curricular, ainda que o texto original induza à prescrição. Com esta proposta das linhas de fuga para enfrentar as determinações da BCN, reconheço a atuação indispensável do professor no ressignificar o marco legal.

 

Se, de fato, ainda atuamos na defesa dos princípios da educação como democracia talvez fosse mais oportuno ressignificar o nacional na política curricular. Ou seja, ao contrário de algumas críticas que reivindicam a primazia do particular para a defesa da diferença, reconhecemos no nacional a potencialidade para assegurar os direitos dos grupos minoritários ou mais vulneráveis. Logo, nossos olhos quando se voltam ao documento, vasculham as linhas de fuga para validar verdades que fortalecem a justificativa do ensino da geografia: isto é, seu caráter político.

 

Assim, talvez, uma das estratégias é resgatar os documentos anteriores e identificar a função do “território” para o ensino da disciplina, por exemplo. A partir desse painel, precisamos assumir o protagonismo docente na construção dessa pauta, discutindo intensamente como operamos com as epistemologias e procedimentos em torno dos sentidos espaciais em nossas aulas. As linhas de fuga como tática para rever um marco legal nos desafia, sem dúvida, para o debate sobre o papel da geografia na escola, ou sobre como a defendemos e, principalmente, como a definimos.

 

 

Referências Bibliográficas

 ANTUNES, R. Adeus ao mundo do trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. Editora Cortez, São Paulo, 8a . Edição, 2002. BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:https://www.basenacionalcomum.mec.gov.br/ Acesso em: outubro de 2015. GABRIEL, C. MORAES, M. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea In: Revista Educação em Questão, v 45, n.31 janAbril, 2013. Disponível em: https://www.periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/5105. Acesso em: setembro de 2014. HAESBAERT, R; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. Revista GEOgraphia, 2009.Disponível em: < https://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/viewFile/74/72>Acesso em: outubro de 2015. HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Editora Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro, 2014. LOPES, A.C. Por um currículo sem fundamentos. IN: Linhas Críticas – Revista da Educação na UnB. v.21 45n. p.455-466. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/16735. Acesso em: outubro de 2014. MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica da Geografia. Editora Contexto, São Paulo, 2006. TYLER, R.W. Princípios básicos de currículo e ensino. Editora Globo, Porto Alegre, 1981.

 

 

i Professora Adjunta do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ii Esse texto é um resumo da versão preliminar de palestra proferida na Mesa “Currículo e Ensino de Geografia Questões Contemporâneas”, no I Colóquio de Educação Geográfica do Colégio Pedro II, Campus de Realengo, realizado no dia 29 de outubro de 2015. O título daquele texto “Por onde anda o território na BNC? Uma análise preliminar da seleção curricular” é livremente inspirado na obra do Professor Ruy Moreira (2006), “Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica”, em que aponta a complexidade da trajetória epistemológica e ideológica da disciplina. Por esta razão, a inspiração do presente texto está em questionar o conhecimento escolar, especialmente nos documentos curriculares, reconhecendo a centralidade do território como princípio do projeto pedagógico. A “Pedagogia Empreendedora” é percebida aqui como concepção educacional que incorpora o discurso do empreendedorismo como princípio de aprendizagem. Para aprofundar tal discussão, convém uma análise crítica do portal: https://fernandodolabela.wordpress.com/servicos-oferecidos/pedagogia-empreendedora/. Acesso em outubro de 2015.

 

 

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