Os primórdios da AGB Carioca - Orlando Valverde - Terra Livre 10 - Geografia, Espaço e Memória
16/12/2015 22:52
Os primórdios da AGB Carioca* - Orlando Valverde
(*) Texto Apresentado no 4o Congresso Brasileiro de Geógrafos, na mesa-redonda, AGB 50 Anos de Trabalho, São Paulo, 1984
Embora não me tenham escalado para falar sobre este tema, na presente
Mesa-Redonda do Cinqüentenário de nossa AGB, quero deixar aqui um registro
sobre a fase inicial da Seção Regional do Rio de Janeiro, quase totalmente
desconhecida, e da qual me orgulho de ter participado e ser dela, hoje em dia, um
dos raros testemunhos sobreviventes.
A fase da História da qual não existem documentos escritos é chamada
"Pré-História". Como, aparentemente, não existem mais documentos sobre a fase
da Seção da AGB do Rio que lhes vou descrever, aí está a razão pela qual escolhi
o título deste relato.
Recentemente transferido da Universidade de São Paulo, onde fundara a
Associação dos Geógrafos Brasileiros, Pierre Deffontaines passou a dar curso de
Geografia Humana na Universidade do Distrito Federal, inaugurada em 1935.
Curiosa e encantadora era a personalidade do fundador de nossa Associação:
alto, magro, esguio, a ponto de ser curvo; cabelos, sobrancelhas e pestanas louros
quase brancos; olhos azuis muito vivazes... Aulas e conferências de Deffontaines,
mais do que trabalhos científicos eram verdadeiras obras de arte! Ele fazia geografia
a golpes de inteligência. Mais do que pesquisas profundas, suas preleções
revelavam lindas descrições de paisagens, comparações de agudeza invulgar, que
eram sobretudo inspiradores de idéias. Por isso, Deffontaines foi um catalisador de
atividades, animadas por sua curiosidade inquieta.
Como não havia no Rio de Janeiro, naquele tempo, ninguém formado em
Geografia, em curso superior, os colaboradores de Deffontaines eram sobretudo
geólogos, engenheiros de minas, professores de geografia; engenheiros civis
dedicados à geodésia e topografia, à economia; médicos, bacharéis, mas
especialmente seus entusiasmados alunos.
No começo, o preparo desses alunos em Geografia era tão incompleto que
Deffontaines espontaneamente resolveu suplementar seu curso: em vez de duas
horas consecutivas de Geografia Humana, passou a dar hora e meia desta matéria,
seguida de outra hora e meia de Geomorfologia.
Isto ainda não lhe bastava. A Geografia fazia parte da própria vida de
Deffontaines. Assim, resolveu ele criar outra "Associação dos Geógrafos
Brasileiros", em 1936, para "conversar sobre geografia", à noite, uma vez por
semana.
Porque teria Deffontaines fundado outra entidade com o mesmo nome?
Temeria ele o desaparecimento da AGB paulistana, ou estaria já antevendo o
desenvolvimento desta Associação, nos moldes federativos que teve mais tarde?
Talvez, a princípio, a primeira hipótese ocorrera a Deffontaines, em vista da
terrível repressão policial que se desencadeou, após o levante promovido pela
Aliança Nacional Libertadora, no final de 1935. É, por outro lado, muito provável
que Deffontaines estivesse inspirado no modelo da Association des Geógraphes
Français.
Seja como for, nunca ouvi uma opinião clara do mestre, a esse respeito. O
que importava a Deffontaines era reunir os interessados em Geografia, e com eles
trabalhar, fazer excursões, debater...
Assim, enquanto em São Paulo o jovem Pierre Monbeig, que o substituíra
na USP, criava a mais sólida escola de geógrafos do país no núcleo USP-AGB,
Deffontaines criava no Rio um outro ramo, até então independente.
É óbvio que um suporte fundamental às atividades de Deffontaines foi dado
com a criação em 1938, pelo Engo Cristóvão Leite de Castro, do Conselho Nacional
de Geografia, dentro do Instituto Nacional de Estatístico, vindo a formar o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística.
A colaboração prestada por Leite de Castro e Sílvio Fróis Abreu a
recém-criada Associação dos Geógrafos Brasileiros, do Rio, foi irrestrita. As
reuniões da AGB carioca se realizavam à noite, no auditório do Instituto Nacional
de Tecnologia (já seria Fróis Abreu, naquele época, diretor do INT?), na Avenida
Venezuela, perto da Praça Mauá. Era um lugar ermo; porém naquele tempo não
eram perigosas as ruas escuras e desertas do Rio de Janeiro.
Fui designado secretário e tesoureiro da Associação. Ganhei um livro de
atas, fino, mas de capa preta e dura, como os de cartório. As contribuições, que eram
de três mil réis (3$000) por mês, eu as guardava em moeda corrente, no final do
livro, dentro de um envelope.
Lamento nunca mais ter visto aquele livro de atas, pois isto me obriga a
recompor os fatos, de memória. Nestas circunstancias, as datas me faltam; a ordem
em que as palestras foram feitas, só lhes asseguro até a terceira, e os temas nelas
tratados, quando eu não tiver certeza, colocarei escrupulosamente um (?), após o
título:
Geografia, Espaço & Memória Terra Livre 10
1ª) P. Deffontaines: " Geografia Humana de montanha, no Brasil".
2ª) S. Fróis Abreu: "Regiões Naturais da Bahia". (Esta comunicação foi
posteriormente transformada em artigo, saído na Revista Brasileira de
Geografia, no I, no 1).
3ª) C. Leite de Castro: "O CNG e o Decreto-Lei nacional no 311".
Este diploma legal, que o referido autor alcunhou de "Lei Geográfica do
Estado Novo", serviu de base à fundação do Conselho Nacional de Geografia,
dentro do IBGE, racionalizou a divisão municipal do Brasil, obrigou as Prefeituras
a mapearem os respectivos municípios (uns — a maioria — eram meros croquis;
outros possuíam base cartográfica precisa; outros, enfim, contrataram
levantamentos planimétricos).
Leite de Castro, jovem, competente, cheio de iniciativa, compreendia que,
fundamentado naquele decreto-lei, que ele próprio idealizara, realizaria uma obra
grandiosa e duradoura. Dentro da Geografia, Cartografia e Geodésia, ele possuía
uma perspectiva histórica semelhante à de Oswaldo Cruz na Higiene; de Pereira
Passos e Prestes Maia, no Urbanismo; de Juscelino Kubitcheck, na Política. Montou
uma estrutura e a fez funcionar!
Colega dele, no curso de Geografia da extinta Universidade do Distrito
Federal, eu era bem mais jovem e inexperiente, porém mais sofrido pelas
perseguições políticas da direita. Por isso, via com certa antipatia qualquer
decreto-lei. E o de no 311 ameaçava com a perda de autonomia ao município que
não elaborasse seu mapa, no devido tempo. Sem dúvida, era um ato ditatorial!
Entretanto, em decorrência desse ato, obtive emprego, fiz carreira como
pesquisador em Geografia, enquanto por longos decênios as Universidades me
fechavam as portas. No plano pessoal, pude encontrar a mulher de minha vida e
criar nossos filhos.
Claro que nessa infinidade de acontecimentos entraram muitos outros fatos
circunstanciais, e eu tive de fazer muitas opções.
Mas, sem dúvida, o Decreto-Lei que criou o CNG foi uma variável que teve
reflexos fortes na Geografia Brasileira e até na minha vida profissional e pessoal:
grão de areia, perdido nessa imensa praia!
Eis um exemplo da "Dialética da História". Mas, retornemos à velha AGB
carioca:
Oton Henry Leonardos fez um relato de suas pesquisas de campo no alto
Tocantins e Araguaia (?).
Josué de Castro falou sobre "Os Mucambos do Recife". Ele correlacionou
esse tipo de habitação com os da África negra. Sua palestra levantou animados
debates, inclusive com o geólogo acima citado.
Numa noite de verão, estava no Rio um geógrafo norte-americano, Preston
E. James, que retomava de uma excursão de pesquisas no Planalto Meridional.
Falou sobre "A expansão do povoamento no Sul do Brasil", tema de seu artigo
depois publicado na "Geographical Review".
Antes de sair para a conferência, ele me telefonou, consultando se deveria
ir de "smoking", e eu lhe disse que o traje era informal. Felizmente! Pesado
aguaceiro desabou em seguida, e, por isso, para vergonha nossa, apenas seis pessoas
assistiram à palestra.
O geólogo paraense Henrique Capper Alves de Souza discorreu, com
acentuado sotaque lisboeta, sobre "Os garimpos de ouro do Gurupi".
Já no final da permanência de Deffontaines no Brasil, ele convidou um
médico chamado Vitor Mayall, para falar sobre "Petrópolis".
Ao sair do nosso país, Deffontaines deixou Silvio Fróis Abreu como
sucessor, na presidência da AGB carioca. Na UDF o substituíram: Ernesto Street,
nas aulas de Geografia Humana, e o Engo José Carlos de Junqueira Schmidt, nas de
Geografia Física.
Ao começo de cada sessão da AGB, eu efetuava a leitura da ata da reunião
anterior, mas no resto, a burocracia era praticamente nula. Falava-se sobre
geografia. E essa é a grande virtude das reuniões profissionais. Além disso,
conhecem-se colegas e pessoas que trabalham no mesmo ramo ou em ciências afins.
Desse modo, conheci eu quase todos os oradores mencionados e mais vários
geólogos: Avelino Inácio de Oliveira, Luciano Jaques de Morais, Alberto Ribeiro
Lamego, assim como a esposa de Ernesto Street, também professora, que
eventualmente o substituía nas aulas.
Colegas meus compareceram com freqüência à AGB. Lembro-me bem de:
Fábio de Macedo Soares Guimarães, Antônio José de Matos Musso, Jorge Zarur,
Carlos Marie Cantão, Miguel Alves de Lima e, mais tarde, um meninão inteligente
e animado, que se chamava Hilgard 0'Reilly Sternberg.
As discussões corriam, às vezes, um pouco à deriva; mas sempre sob a
orientação simpática de Deffontaines. Além dos temas das palestras, eram elas
motivadas pelas observações das excursões. E estas não foram poucas, sempre com
grande participação dos alunos da UDF e de funcionários do CNG.
Numa época em que os automóveis eram raros, tomava-se bonde, trem ou
barca, e depois andava-se muito a pé. Assim, foram feitas as excursões seguintes*:
- Ao Sumaré, e daí pela serra da Carioca, à Pedra Bonita, até o Alto da
Boa Vista.
Ao pico da Tijuca.
A Ilha de Paquetá.
- A Jurujuba, e daí até o Forte de Santa Cruz.
- A Vassouras, daí de carro até Pati do Alferes, seguindo a pé, pela Serra
do Mar, até o Bingen (subúrbio de Petrópolis).
(*) Não estão em seqüência cronológica.
Em setembro de 1940, a Sociedade Brasileira de Geografia promoveu, com
o apoio do CNG, o IX Congresso Brasileiro de Geografia, na cidade de
Florianópolis.
A 2a Guerra Mundial estava deflagrada. A França já havia caído. A
propaganda nazista lavrava no Sul do Brasil. Na exposição de mapas, anexa ao
Congresso, organizada pelo CNG, o cônsul alemão de depositou um grande caixote,
com livros de propaganda nazista, para serem distribuídos à tarde. No horário de
almoço, com o recinto da exposição fechado, furtei o caixote, auxiliado por alguns
colegas do CNG, e o joguei no mar.
Poucas semanas depois, entreguei dois exemplares, que eu tirara do caixote,
ao Prof. Preston James, então revertido ao posto de coronel do Exército
norte-americano, encarregado do serviço de informações do Departamento de
Estado, para a América Latina.
Era a geopolítica em ação.
O importante para a Geografia Brasileira naquele conclave foi o primeiro
encontro dos jovens geógrafos dos dois grupos da AGB (de São Paulo e do Rio)
com os velhos adeptos da Geografia de nomenclatura, da "veneranda" Sociedade
de Geografia.
Os paulistas eram capitaneados por Monbeig. Lá estavam: Aroldo de
Azevedo, João Dias da Silveira, Ary França, Dirceu Lino de Matos, Maria da
Conceição Vicente de Carvalho... Do grupo do Rio estavam, além de mim
Cristóvão Leite de Castro, Lúcio de Castro Soares, Jorge Zarur...
Como essa moçada perturbou a velharia, é difícil de descrever! Pela primeira
vez, em lugar de palmas e comentários laudatórios, aqueles senhores passaram a
ouvir críticas inflamadas, ironias e propostas de recusa dos seus trabalhos. Este
choque de idéias reproduzia no Brasil, aliás, o que havia ocorrido no princípio do
século na velha Sociéte de Geographie de Paris, entre os geógrafos tradicionais e
OS jovens grupos então liderados por Emmanuel De Martonne e P. Vidal de La
Blache.
Em 1941, apareceu no Conselho Nacional de Geografia um geógrafo
francês, vindo do Japão. Chamava-se Francis Ruellan. Era geomorfólogo,
ex-discípulo de De Martonne. Foi imediatamente contratado pela Faculdade
nacional de Filosofia. Em pouco tempo, ele empolgou um grande número de
estudantes, atraindo-os para o curso de Geografia. Um bom grupo deles foi
contratado pelo Conselho Nacional de Geografia, onde Ruellan passou a dar
assessoria técnica.
A partir daí, é difícil distinguir o que era pesquisa de AGB, de CNG ou de
FNFi. Quase sempre, as três entidades estavam mais ou menos envolvidas. Os
trabalhos de campo e as reuniões de debates se sucedem: ao vale do Cachoeirinha,
a Cabo Frio, a Campos, a Paraíba do Sul, ao Paraná e Santa Catarina, ao Vale do
Rio Doce...
Apoiada irrestritamente pelo Conselho Nacional de Geografia, do qual era
uma das cinco associações filiadas (juntamente com a Sociedade Brasileira de
Geografia, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Clube de Engenharia e
a Academia Brasileira de Ciências), a AGB carioca estava em plena floração; era
um verdadeiro curso de pós-graduação para pesquisadores e de atualização para
professores, quando se deu a fusão dos dois núcleos — o de São Paulo e o do Rio
de Janeiro — em 1943, na Assembléia Geral, reunida em Lorena.
Estava terminado o ciclo que chamo de "pré-histórico" da AGB do Rio de
Janeiro. Antes de partir o grupo carioca para a referida cidade do Vale do Paraíba
paulista, eu entreguei àquela que seria diversas vezes a tesoureira da Associação
Nacional — Dora de Amarante Romariz — as duas provas materiais de minha
participação, até ali: o livro negro de atas e um envelope contendo quinze mil réis.
Esta narração despretensiosa encerre alguns ensinamentos importantes.
Não se cuidava quase de organização, e muito menos de defesa da classe;
mas a AGB era atraente, vivaz, fecunda. Hoje, as Secções locais se preocupam
muito com questões profissionais, de emprego e epistemológicas... Não se pode
condenar essa orientação, numa conjuntura de crise, como a que vivemos. Porém,
quase ninguém comparece às sessões.
O fator básico que tornou a AGB a mais fértil organização privada de estudos
geográficos em nosso País foram os trabalhos de campo em equipe, guiados por
geógrafos experientes. Os debates que se seguiam envolviam questões teóricas para
a solução de problemas práticos; não derivavam de situações hipotéticas.
É bem verdade que as pesquisas de campo são, hoje em dia, dificultadas pela
carestia dos transportes automóveis. No passado, entretanto, se os combustíveis não
eram caros, os próprios veículos o eram, e as estradas de rodagem eram muito ruins.
Os nossos precursores agebeanos resolveram essas dificuldades marchando
sobretudo a pé. Nós podemos fazer a mesma coisa. Ademais, o enfoque social
enriqueceu o nosso arsenal metodológico, tomando a Geografia um instrumento
mais eficaz no planejamento regional.