Posicionamento da AGB Rio sobre a nova Matriz Curricular da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro
08/12/2021 22:37
A Seção Local Rio de Janeiro da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB-Rio vem, através desta, externalizar seu posicionamento e alguns questionamentos direcionados à Secretaria Municipal de Educação (SME), a respeito da nova matriz curricular da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Inicialmente, cabe destacar que a principal mudança da matriz curricular que afeta o ensino de Geografia é a redução desta disciplina de 3 para 2 tempos de aula por turma por semana. Tal processo teve início na matriz aplicada em 2021, na qual atinge outras disciplinas (História, Ciências, Artes e Línguas Estrangeiras). Na matriz a ser implantada em 2022 (Resolução 297), as demais disciplinas afetadas em 2021 tiveram sua carga horária anteriormente praticada restaurada, apenas Geografia e História permaneceram com a redução de 3 para 2 tempos de aula semanais por turma nas escolas de Ensino Fundamental II – Horário Parcial. Tal redução é justificada pela suposta necessidade de criação de disciplinas eletivas. É importante ressaltar que essa mudança afeta as escolas de horário parcial, que representam a maior parte da Rede Municipal de Ensino.
Para os professores com regime de trabalho de 16 horas semanais, sendo 10 tempos em sala e 6 de planejamento pedagógico – em atendimento à legislação de 1/3 - a isso implica a adição de pelo menos 2 turmas para lecionar. Para professores de 40h, significou a adição de pelo menos 5 turmas. O quadro torna-se pior quando observamos que são esses professores que acabam sendo deslocados para assumir 1 tempo de eletiva por turma para compor sua carga horária que foi reduzida. Essa situação fica ainda mais crítica se tiverem que completar a carga horária em outra escola.
Outro ponto a ser observado na nova matriz curricular são as escolas denominadas Ginásios Experimentais de Novas Tecnologias – GENTE. A Resolução aponta que a Mentoria e os Laboratórios de Aprendizagem contemplam os componentes curriculares Língua Portuguesa, História, Geografia, Matemática e Ciências em suas cargas horárias de 12 tempos semanais cada disciplina. Entretanto, o documento não aponta quantos tempos serão dedicados a cada componente, nem mesmo a especialidade do docente que ministrará ambas as disciplinas.
Feita esta introdução, elencamos alguns questionamentos - já realizados pela AGB-Rio e não respondidos pelos representantes da SME em audiência Pública realizada no dia 15 de agosto de 2021:
1) Como esvaziar as disciplinas que estruturam o Ensino Fundamental II e preparam os estudantes para a produção de saberes como, por exemplo, o exercício da cidadania e de seu entendimento como sujeitos na sociedade brasileira, num momento onde todos os especialistas da educação sinalizam uma lacuna no processo de ensino e aprendizagem no atual momento de excepcionalidade devido ao contexto pandêmico?
2) Quais entidades e fundamentações teóricas e acadêmicas do campo da educação, da Geografia e das demais ciências de referências afetadas, bem como da sociedade civil organizada, fundamentaram esta reforma na Matriz Curricular?
3) Houve um amplo debate junto às entidades científicas e à sociedade que conferissem um caráter democrático e consistente às decisões tomadas?
4) Na ocasião da Audiência Pública, foi afirmado pela representante da SME que as escolas podem decidir quais serão as disciplinas eletivas oferecidas pela unidade escolar, conforme as suas necessidades. Quais necessidades são essas? Foi observada a concepção política/pedagógica, ou se trata somente de cobrir a falta de professores - que é de responsabilidade da prefeitura suprir e contratar? Se trata de qual prioridade? A educação, ou o cortes de investimentos na mesma? O que leva a SME a contrariar a priorização curricular que ela mesma definiu como eixo de reposição de conteúdos disciplinares no contexto pandêmico?
Essa mudança curricular aponta para adequação da Rede Municipal do Rio de Janeiro à Base Nacional Curricular Comum (BNCC), repetindo os mesmos equívocos só que de maneira ainda mais autoritária. Ao longo dos últimos anos, toda a rede debateu e propôs modificações curriculares para essa adequação à BNCC. Em nenhum momento foi aventada mudança de carga horária das disciplinas. Além disso, nas discussões realizadas pelos docentes da rede, buscou-se garantir a autonomia docente na concepção pedagógica. A atual gestão iniciou seu mandato passando por cima destes debates e da realidade das escolas, desrespeitando assim os seus projetos político-pedagógicos e seus processos democráticos de debates sobre questões que afetarão toda a comunidade escolar.
A mais importante função da educação, a função de socialização, tem a ver com as muitas formas pelas quais nós nos tornamos membros e parte de ordens sociais, culturais e políticas específicas por meio da educação. Educação e perfil do aluno egresso, formado para o exercício pleno da cidadania deveria ser o foco das instituições públicas de ensino.
Lamentavelmente, esta reforma na matriz curricular explicita que não há uma preocupação nem com aprendizagem, tampouco com educação. Não há a preocupação com o perfil do aluno egresso, com a formação de um sujeito que compreenda e que se compreenda no mundo, ou, como diria o grande geógrafo e intelectual brasileiro, Milton Santos, que seja dotado do poder que a Geografia confere, que é a “capacidade de entender a realidade em que vivemos” .
Os objetivos e fins desse modelo de educação e dessa matriz curricular não são as e os estudantes e a educação cidadã. Os objetivos e os fins da imposição desta nova matriz curricular buscam fazer com que números de horas, de profissionais e dos cada vez mais parcos recursos destinados à educação, caibam na “planilha” sem que sejam feitos investimentos e, de preferência, economizando recursos. Segundo esta lógica, quanto menos professores houver e quantos mais jovens conseguirem estocar em sala de aula, melhor!
Na prática, as disciplinas eletivas são “tapa-buracos” da grade de horários de muitas escolas que apresentam falta de professores. A prefeitura tapa o buraco sem contratar novos professores, aumentando a carga de trabalho em sala e não dando a devida condição de planejamento para tal modificação. Essa racionalidade adotada pela prefeitura do Rio de Janeiro, foge da esfera do pensamento que configura o espaço escolar e abre espaço para o advento da lógica empresarial, sem uma concepção política coletivamente construída pelos profissionais da educação, comunidade escolar e pelos especialistas de cada ciência de referência. Até mesmo a proposta do que seria a disciplina eletiva chamada “Projetos de Vida” vira uma grande enganação neste modelo imposto pela atual gestão municipal.
Além de não ter havido ampla e consistente consulta sobre tais modificações, não houve sequer tempo de planejamento, nem estão previstas no calendário reuniões de replanejamento. As equipes têm trabalhado a “toque de caixa”. Essa gestão está jogando os profissionais da educação com seu savoir faire, ou melhor, suas experiências e vivências profissionais e pessoais, numa armadilha polivalente e voluntarista, no pior sentido da palavra – pois muitos professores terão que assumir novas disciplinas genéricas, sem uma construção interdisciplinar, sem autonomia pedagógica (pois a lógica imposta é a das habilidades/competências), e sem tempo de planejamento suficiente e integrado ao projeto pedagógico escolar.
Como diria Darcy Ribeiro, “a crise da educação não é uma crise. É um projeto”.
Lamentavelmente a frase de Darcy Ribeiro é atual e se aplica ao caso em tela. Não é incompetência, incapacidade ou qualquer problema de gestão. Com frequência vemos serem apresentados dados quantitativos, duros e descontextualizados, apresentados por pessoas que planejam a educação com “cabeças de planilha”. Profissionais da educação e estudantes são tratados como se fossem objetos inanimados de onde tem que extrair o máximo da exploração do tempo de trabalho irrefletido, alienado, sem tempo de planejamento, avaliação, discussão com comunidade escolar, ou, especificamente no caso dos estudantes, são tratados como unidades a serem estocadas do jeito que der menos “problemas”. Os resultados humanos e sociais simplesmente não entram nessas equações e nessas planilhas.
Colocam pessoas que não entendem nada do que é a educação com projeto político, pedagógico e social, para definir os rumos não só da educação, mas das vidas das pessoas e do futuro da sociedade, afinal de contas, somos seres políticos e sociais.
De maneira geral, essa modificação na matriz curricular expressa uma concepção de escola pública como um depósito crianças e adolescentes, oferecendo uma educação voltada para o mercado de trabalho de baixa qualificação, subtraindo a produção de saberes e reduzindo a experiência na escola à uma sequência de aulas desarticuladas e desconectadas de um sentido de formação para a cidadania plena. É um exemplo concreto de como a BNCC impacta de maneira desigual os estudantes brasileiros e mantém sua base constitucional de perversidade na escala municipal na rede de ensino do Rio de Janeiro. As escolas voltadas para a elite seguirão mantendo uma ampla gama de disciplinas e carga horária de estudos, ao passo que as escolas das classes populares sofrem uma significativa redução de tempos de disciplinas importantes para formação das/dos estudantes, como Geografia e História. Reforça-se assim a lógica da escola pública como “depósito” de alunos/as, bem como é promovida, a largos passos, a precarização do trabalho docente.
Isto posto, a AGB-Rio torna público o seu posicionamento crítico a todo o processo antidemocrático e a promoção de uma proposta de educação desvinculada ao lugar e ao papel que as instituições públicas de ensino, numa sociedade desigual como a brasileira, devem cumprir. Reafirmamos a necessidade de buscar, a partir do chão da escola, o diálogo necessário para produção de conhecimento e de cidadãos/as unilaterais para enfrentar os desafios individuais e societários do agora e do porvir.
Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2021.
AGB-Rio